sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Um endereço para Adão e Eva

Arqueólogo inglês diz que encontrou, no Irã, o Jardim do Éden. Só que, para ele, o lugar foi o berço da civilização -- e não da espécie humana, como diz a Bíblia.

Por Fernando Valeika de Barros, de Tabriz, Irã
Não é preciso ser religioso para se deixar fascinar pela história contada no livro Legend — 7 The Genesis of the Civilization (Lenda — A Gênese da Civilização), lançado em outubro de 1998 pelo arqueólogo David Rohl. Presidente da Sociedade de Egiptologia de Sussex, na Inglaterra, e ex-pesquisador do Instituto de Arqueologia Britânico, Rohl se baseia em nomes antigos e atuais de rios, cidades e montanhas para provar que encontrou o Éden — o pedaço de terra aprazível onde, segundo o mito bíblico, teriam surgido Adão e Eva, os primeiros humanos da Terra. Só que o Éden do arqueólogo não é nada parecido com o do livro sagrado. Fica na região de Tabriz, uma cidade feiosa do Irã. Além disso, para ele, o que surgiu ali não foi o primeiro homem, mas a primeira tribo capaz de dominar a agricultura e domesticar animais. "O Éden foi o berço da civilização", disse Rohl à SUPER.
A tese é impactante. Em cinco meses o livro vendeu, só na Inglaterra, 35 000 exemplares e a rede de televisão BBC já começou a gravar uma série de documentários sobre o assunto. Entre os acadêmicos, muitos acham que Rohl forçou a mão na análise das evidências para criar uma história vendável. Mas há também quem admita a possibilidade de ele estar certo.
Trata-se mesmo de uma questão polêmica. E antiqüíssima. Desde o historiador romano Flavius Josefus (37-100), muitos estudiosos já acreditaram ter achado o Éden. É que o livro do Gênesis — o primeiro entre os 24 do Velho Testamento, que junto com o Novo Testamento compõe a Bíblia — dá indicações bem precisas sobre o seu endereço. Aceito por cristãos, judeus e em parte até por muçulmanos, o mito do jardim do paraíso inspira milhões. Procurá-lo é uma tentação.
Onde estão as macieiras e as serpentes?
Dizer que o Paraíso bíblico fica em Tabriz parece até provocação. Na cidade, 900 quilômetros a noroeste de Teerã, perto da Turquia, praticamente não há árvores. O ar é poluído por refinarias de petróleo e escapamentos de carros cujos donos gastam mísero 1,5 dólar para encher o tanque.
Bem, nem sempre foi assim. Quem sai de lá em direção ao sul encontra uma paisagem menos árida, com rios, provavelmente mais parecida com a que se via há 8 000 anos, quando, de acordo com Rohl, Adão era o manda-chuva. Há videiras e ameixeiras, além de plantações de batata e de cebola. Macieiras, mesmo, como as presentes na lenda bíblica, são raras. As montanhas e o Lago Urmia, de água salgada, também enfeitam o lugar. Mas ele está longe de ser o jardim exuberante do mito da origem humana.
A chave da hipótese de Rohl — que se diz agnóstico, ou seja, não acredita em Deus, embora não descarte sua existência — é o Rio Adji Chai, que passa dentro de Tabriz. A partir de comparações entre o Gênesis e os nomes atuais de rios, montanhas e cidades (veja à direita), o arqueólogo concluiu que o Adji Chai era o rio que banhava o Éden. Daí comparou histórias bíblicas e lendas para construir sua teoria sobre a tribo de Adão, a fundadora da civilização (veja a página 66), que depois a teria levado para a Mesopotâmia. Aí, entre os rios Tigre e Eufrates, no atual Iraque, surgiriam as mais antigas cidades conhecidas, há 6 000 anos.
A hipótese de que a região montanhosa do noroeste do Irã abrigou povos evoluídos é aceita por muitos arqueólogos. O curdo Mehrdad Izady, da Universidade Harvard, disse à SUPER que resíduos em potes encontrados nos Montes Zagros, no Curdistão, pertinho dali, indicam que já se fermentava vinho e cerveja na região há cerca de 5 000 anos. Para o inglês James Melaart, do London College, "não há como negar que os habitantes das terras altas domesticaram animais, plantaram cereais e usaram ferramentas antes dos povos das terras baixas". O difícil é provar que esses povos migraram para a Mesopotâmia, o que Rohl tenta fazer por meio da pesquisa filológica — o estudo da língua e sua evolução — e comparando cerâmicas. "O problema é que cerâmica não é passaporte", retruca Melaart. Para Rohl, pode ser, sim. Como naquele tempo não havia comércio, ele defende que encontrar a mesma decoração de vaso em regiões diferentes só pode significar migração.

Ligações polêmicas
Outro nó da tese é a localização do Éden. "Ele não passa de uma lembrança mitológica", descarta o arqueólogo Pierre Delumeau, do College de France, em Paris. "Ao longo de tanto tempo, vestígios de nomes desaparecem", garante o filólogo iraniano Abdelmagid Arfall, discípulo de Samuel Kramer, da Universidade de Chicago, um dos papas na História da Mesopotâmia. Já o arqueólogo inglês Kenneth Kitchen, da Universidade de Liverpool, que também estuda a região, admite a possibilidade. "Pode haver mesmo uma conexão entre nomes de hoje e do passado", afirma. Kitchen faz parte do grupo que não descarta a hipótese de a
Bíblia ser um aglomerado de mitos que podem ter, sim, algo a ver com a realidade de povos antigos.
Casamento político e frutífero

Mas e a Eva? Onde entra na história? Rohl tem a resposta na ponta da língua. Para conquistar poder, Adão teria feito uma aliança com a tribo Havah, que morava a leste do Éden, casando-se com a filha de seu líder. A moça levou junto o nome de seu povo e passou à posteridade com a simplificação Eva. "Foi o mais antigo casamento político conhecido", disse o arqueólogo à SUPER. "O evento acabou sendo interpretado pelos descendentes como o início da civilização, pois uniu tribos importantes numa nova, que transferiu adiante seus mitos e rituais, criando uma cultura."
Passados de boca em boca, esses mitos teriam se espalhado e chegado centenas de anos mais tarde à Mesopotâmia. Numa das mais importantes cidades dessa região, Ur, morava, segundo a Bíblia, um pastor chamado Abraão. Para Rohl, ele teria assimilado as lendas e, quando partiu para a Terra de Canaã, hoje Israel, onde seus descendentes se dividiriam entre judeus, cristãos e mulçumanos, levado as histórias que acabaram eternizadas nas páginas do Gênesis.
Essa é, de acordo com Rohl, a origem da crença de que todos somos descendentes de um casal que há milhares de anos teve de sair do Jardim do Éden porque comeu o fruto proibido da Árvore do Conhecimento. Mas, como não há vestígios físicos de toda a saga, vai ser muito difícil comprová-la. Adão e Eva, ao que tudo indica, continuarão com endereço duvidoso.
Para saber mais
A História Começa na Suméria, Samuel Kramer, Europa-América, Lisboa, 19971. A dica bíblica
O livro do Gênesis diz que o rio que corre pelo Jardim do Éden fica junto às nascentes de quatro outros rios: Eufrates, Tigre, Gihon e Pishon.

2. Dança dos nomes
Mapas antigos mostram que o Gihon é o atual Aras. O nome mudou para Jihon-Aras e para Aras. A montanha Kusheh Dagh, ali perto, confirmaria a tese. "A Bíblia fala de uma Terra de Kush junto a esse rio", diz Rohl.

3. De Pishon a Uizhun
Por uma questão fonética, os semitas, antepassados dos hebreus, que escreveram a Bíblia, teriam convertido o U, do atual rio Uizhun, em P de Pizhun, que virou Pishon. O Gênesis diz que esse rio corta a rica Terra de Havilah e, de acordo com Rohl, "existiram minas de ouro e lápis-lazúli ali".

4. Bem no meio
O rio que irrigava o Éden seria, então, o Adji Chai, que passa em Tabriz. Outra coincidência: edin, em hebreu, significa campo aberto, "exatamente a situação encontrada na região", diz Rohl.

5. Um líder
Bem aqui, há 8 000 anos, teria morado Adão, ou Addam — homem vermelho, em hebreu, uma provável referência ao costume de polvilhar mortos com a poeira avermelhada do lugar. O patriarca teria sido o líder de uma tribo avançada, que domesticava animais e fazia lavouras.

6. Dois rumos
Terremotos e transformações climáticas teriam empurrado os descendentes de Adão em duas direções. Uma parte, segundo a Bíblia, teria ido com seu filho Caim para a Terra de Nod, que Rohl localiza perto da atual Ardabil, a leste de Tabriz. A prova seria uma região chamada Nodqi, nome muito parecido. Depois, os descendentes de Caim teriam seguido rumo ao sul, para os Montes Zagros e a Mesopotâmia.

7. Montanha rica
Outro filho de Adão, Seth, teria se fixa do perto do Lago Urmia, onde, de acordo com lendas locais, teria fundado o rico reino mitológico de Aratta, que Rohl localiza perto de um rio que tem o mesmo nome. Depois, o grupo teria ido para o Curdistão. Até hoje existe uma tribo curda (os Yazidi) que acredita descender dele.

8. Sete portões
No caminho entre o Éden e a Mesopotâmia há sete passagens estreitas entre as montanhas, que o arqueólogo identifica como os famosos sete portões do Paraíso citados na Bíblia. Falha de tradução
O deus Enki foi punido com dores terríveis nas costelas pela deusa-mãe, Ninhursag, porque comera plantas proibidas do paraíso. A pedido de outros deuses, Ninhursag reconsiderou o castigo e criou a deusa Ninti, com poderes para curar o jovem. Em sumério, Ninti quer dizer "senhora da costela", mas numa tradução arcaica também poderia ser "senhora que faz a vida". O americano Samuel Kramer, um dos maiores especialistas na História da Suméria, acredita que uma versão confusa dessa lenda foi parar na Bíblia, dando origem ao mito de que Eva foi feita de uma costela de Adão.

Quase um Noé
Uma enorme tempestade causou uma grande inundação mas o mortal Ziazudra (há também lendas que o chamam de Atrahaxes e Utnapishtim) conseguiu salvar a própria pele. Para isso, recebeu ajuda dos deuses, que o ensinaram a construir um barco e pediram segredo para não desagradar o resto da humanidade. Como cumpriu o prometido, Ziazudra foi recompensado com a vida eterna. Esse Noé, aparentemente mais egoísta, não salvou nem bichos nem outros seres humanos.

Irmãos em guerra
O deus-pai, Enlil, recebeu animais do filho Emesh (o verão) e plantas de Enten (o inverno). Gostou mais dos presentes de Emesh e Enten ficou com inveja. Exatamente o que acontece com o agricultor Caim e o pastor Abel no Velho Testamento. Deus teria preferido as ofertas do segundo. O primeiro, despeitado, o matou.
Descobrir onde fica o paraíso a partir das dicas bíblicas é uma espécie de puzzle que atrai estudiosos há muito tempo. "Todo ano surgem livros cravando algum ponto do planeta como sendo o jardim bíblico", nota à SUPER Monique Alexandre, do departamento de História da Religião da Universidade de Paris. Algumas das propostas são bem parecidas com a de David Rohl.

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